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TEMPERANÇA
O homem que procura nos excessos de todo gênero o requinte do gozo coloca-se abaixo do animal, pois este sabe deter-se, quando satisfeita a sua necessidade.[1]
A temperança é uma das quatro virtudes cardinais, ou cardeais, que junto com a justiça, a coragem e a prudência, formam o conjunto tido pelos antigos gregos e pelos cristãos Ambrósio de Milão, Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino, como o eixo fundamental das virtudes que polarizam todas as demais virtudes humanas.
O termo temperança vem do latim temperare, que quer dizer temperar, combinar, equilibrar, guardar a medida, a justa proporção. Assim, temperança quer dizer moderação em todos os prazeres dos sentidos.
O homem que possui essa virtude usa as coisas e tem nisso o melhor prazer possível, mas sem chegar ao fastio, à saciedade, pois o fastio já não é mais prazer. Se a temperança é a virtude que modera os desejos sensuais, é também a que garante um desfrutar mais puro ou mais pleno. Poderíamos dizer que ela proporciona um prazer esclarecido, dominado, cultivado, de que cada um pode desfrutar sem prejuízo para outrem.
É pela moderação que somos senhores dos nossos desejos, dos nossos prazeres, em vez de sermos seus escravos. Quem desfruta livremente desfruta melhor, pois desfruta também do prazer de ser livre.
Que prazer é comer quando se tem fome, e que prazer se sente quando se mata a fome, sem ficar empanturrado!
Geralmente quem fuma, por exemplo, diz fumar por prazer, mas se não pode deixar de fumar é escravo do cigarro. Aquele que bebe, só desfruta desse prazer se não é escravo do álcool, e só faz amor com prazer aquele que não é escravo do desejo, e assim por diante, porque quem é escravo não é feliz.
Mas isso tudo é fácil? Cremos que não, e é por isso que a temperança é uma virtude, uma força, uma excelência moral. Ela é que nos assegura o meio entre os extremos da intemperança e da insensibilidade, entre a tristeza do desregrado e a do incapaz de gozar, entre o fastio do glutão e o do anoréxico.
Segundo o filósofo André Comte-Sponville,[2] o intemperante é um escravo, mais subjugado ainda por transportar em toda parte seu amo consigo. Prisioneiro de seu corpo, prisioneiro de seus desejos ou de seus hábitos, prisioneiro de sua força ou de sua fraqueza.
Como se vê, a moderação é um poder moral que nos preserva dos excessos e coloca o controle dos gozos em nossas mãos. Pascal, sábio filósofo francês que viveu no século dezessete, disse: “Eu como para satisfazer o estômago, e não o apetite.”
De fato, a natureza estabeleceu limites ao corpo, mas o intemperante, ou imoderado, sempre dá um jeito de ultrapassar esses limites.
Ser moderado ou temperante é contentar-se com o necessário. Nem pouco, nem muito, mas o suficiente.
Ainda segundo Sponville: Trata-se de desfrutar o mais possível, o melhor possível, mas por uma intensificação da sensação ou da consciência que se tem desse desfrutar, e não pela multiplicação indefinida de seus objetos. Pobre Dom Juan, que necessita de tantas mulheres! Pobre alcoólatra, que precisa beber tanto! Pobre glutão, que precisa comer tanto!
As necessidades do corpo são fáceis de satisfazer. Há coisa mais simples do que matar a sede? Mais fácil de satisfazer – salvo miséria extrema – do que um estômago ou um sexo?
Como se pode perceber, não é o corpo que é insaciável. A ilimitação dos desejos, que nos condena à falta, à insatisfação ou à infelicidade, nada mais é que uma doença da imaginação.
Temos sonhos maiores que a barriga, e censuramos absurdamente nossa barriga por sua pequenez! Já o sábio “estabelece limites para o desejo, como para o temor”: são os limites do corpo, e são os da temperança. Mas os intemperantes os desprezam ou querem livrar-se deles. Não têm mais fome? Provocam o próprio vômito. Não têm mais sede? Alguns amendoins bem salgados – ou o próprio álcool – resolvem. Não têm mais vontade de fazer amor? Alguma revista pornográfica dará um jeito de pôr a máquina para funcionar de novo… Sem dúvida, mas para quê? E a que preço? Ei-los prisioneiros do prazer, em vez de serem liberados dele (pelo próprio prazer)!
Prisioneiros da falta, a tal ponto que, na saciedade, acaba por lhes faltar! Que tristeza, dizem então, não ter mais fome nem sede de nenhum tipo… É que eles querem mais, sempre mais, e não sabem se contentar, nem mesmo com o excesso! É por isso que os desregrados são tristes; é por isso que os alcoólatras são infelizes; e o que há de mais sinistro do que um glutão empanturrado? “Comi demais”, diz ele refestelando-se, e ei-lo pesado, inchado, esgotado…
O glutão sempre prefere a quantidade à qualidade, enquanto o gourmet prefere a qualidade, o sabor, o que não deixa de ser um progresso. Já o sábio pensa diferente. Para ele, mais importante que o conteúdo prato é a qualidade do seu prazer, das boas companhias, dos bons diálogos, e isso ele saboreia com calma e recolhimento.
O temperante é senhor dos seus desejos, e limita seus desejos ao necessário. E o necessário é traçado pela própria natureza, que sempre nos avisa quando chegamos no limite. Quem respeita esses limites é feliz porque sabe contentar-se com o necessário. São Francisco de Assis foi um desses sábios, que viveu feliz mesmo na pobreza. Para ele a vida bastava, e estar vivo era para ele um prazer.
O grande desafio dessa virtude chamada temperança é limitar os desejos mais fortes e ao mesmo tempo mais necessários à vida do homem, que são: comer, beber, dormir, fazer amor. E é porque são bens necessários à existência que são prazerosos e, portanto, não devem ser suprimidos, mas controlados.
Diz, ainda, Sponville: A temperança não é um sentimento, é um poder, isto é, uma virtude. Ela é “a virtude que supera todos os gêneros de embriaguez”, dizia Alain, e deve, portanto, superar também a embriaguez da virtude, e de si mesma – e é aí que ela se aproxima da humildade.
Concluímos com Allan Kardec:
Se o homem só fosse instigado a usar dos bens terrenos pela utilidade que têm, sua indiferença teria talvez comprometido a harmonia do Universo. Deus imprimiu a esse uso o atrativo do prazer, porque assim é o homem impelido ao cumprimento dos desígnios providenciais. Mas, além disso, dando àquele uso esse atrativo, quis Deus também experimentar o homem por meio da tentação que o arrasta para o abuso, de que deve a razão defendê-lo.[3]
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